Há alguns dias, foi publicada uma matéria no site da Época Negócios comparando a riqueza do presidente da Amazon, Jeff Bezos, que recentemente se tornou o homem mais rico do mundo, com a de vários países. Outros publicaram matérias parecidas, todas baseadas em uma análise publicada pela Bloomberg de que Bezos seria mais rico do que 133 países, pois o patrimônio dele supera o PIB dos respectivos países. Segue a matéria:
Você já deve ter visto comparações como essa serem publicadas diversas vezes nos meios de comunicação. Porém, essa comparação não faz muito sentido, pois o PIB não é uma medida de riqueza, mas uma medida de renda. A renda é o que se ganha em um período de tempo específico (um mês, um ano, etc), enquanto a riqueza é o se acumulou ao longo do tempo. Fazer a comparação acima seria, em termos simples, como dizer que eu sou mais rico do que você porque eu tenho 10 mil reais acumulados no banco, enquanto você tem um salário de 2 mil reais por mês. Mas você poderia ter 20 mil acumulados no banco e isso faria de você o mais rico.
A comparação correta seria a do patrimônio de Bezos com o patrimônio acumulado dos países, não com o PIB. Um país não possui como patrimônio apenas o valor do seu último PIB, mas toda a riqueza acumulada até o momento.
Para analisar o patrimônio de um país, podemos dividi-lo em setor público e setor privado. Assim surge a primeira dificuldade, poucos países têm estimativas oficiais do patrimônio acumulado pelo setor privado. Não é fácil mapear o patrimônio privado e os dados informados ao fisco só cobrem parte da riqueza das pessoas. Sem estimativas deste patrimônio, a comparação com os 133 países nem seria possível.
Com relação ao setor público, geralmente há transparência com relação aos dados. São divulgadas informações sobre quanto o país arrecada em impostos, quanto gasta com administração pública, quanto possui em ativos, etc. Aqui entra um ponto chave deste tipo de análise. Comumente, usa-se o patrimônio líquido (PL) como medida para análise da riqueza. O PL é a diferença entre ativos e passivos, em que os ativos são os bens e o passivo são as dívidas de uma pessoa ou de uma organização. A maioria dos países têm dívidas públicas maiores que o estoque de ativos públicos, possuem dívidas líquidas na casa dos bilhões ou trilhões de dólares em seus setores públicos. Assim, utilizando o PL, não só o Jeff Bezos, mas eu, você ou qualquer pessoa seria mais rico do que o setor público da maioria dos países. Então, será que somos mais ricos do que o governo americano? Os Estados Unidos fecharam o ano de 2017 com dívida líquida da ordem de 82 % do PIB, mais de 15 trilhões de dólares negativos. Segue uma matéria que cita os poucos países com patrimônio líquido positivo na área pública:
https://exame.abril.com.br/economia/7-paises-que-tem-mais-poupanca-do-que-divida/
O patrimônio líquido também é usado para comparar a riqueza entre as pessoas. Você já deve ter visto comparações da seguinte forma: os 1%, 5% ou 10% mais ricos têm o mesmo patrimônio que os 40%, 50% ou 60% mais pobres. Também é comum a comparação de que um determinado número de bilionários tem a mesma riqueza que algum percentual da população mais pobre. A matéria a seguir é um exemplo recente:
https://exame.abril.com.br/economia/5-bilionarios-tem-mesmo-que-50-mais-pobre-no-brasil-diz-oxfam/
É intuitivo achar que quem tem mais patrimônio líquido está automaticamente em melhor situação, mas as dívidas podem distorcer essa ótica. Pessoas com dívidas grandes podem ser classificadas como pobres mesmo tendo uma boa situação de vida. Um exemplo, considere um camponês no interior da África ou da Índia, ele vive na extrema pobreza, tem pouca perspectiva de melhorar de vida, tem um patrimônio líquido próximo de zero, pois possui poucos bens, mas também não tem dívidas. Agora considere um jovem também pobre, que possui poucos bens, mas é estudante aqui no Brasil. Ele acabou de adentrar ao FIES e, por isso, tem uma dívida de alguns milhares de reais, mas não vive na extrema pobreza. Apesar de ter um patrimônio negativo, não passa tantas dificuldades para sobreviver quanto o camponês. Usando o patrimônio líquido como medida de riqueza, o camponês seria mais rico que o estudante brasileiro. Alguém pode estar momentaneamente endividado e com PL negativo por um bom motivo: entrou em um financiamento estudantil, pegou um empréstimo para abrir o seu próprio negócio, entre outros motivos. O PL não leva em consideração a expectativa de ganho futuro.
O caso do Eike Batista fornece um outro exemplo interessante. Na derrocada de seu conglomerado de empresas, o empresário chegou a ostentar um patrimônio negativo de mais um bilhão de dólares, o que faria dele um bilionário às avessas, figurando no 1% mais pobre. Mas ele continuou usufruindo de coisas que pessoas realmente pobres não teriam acesso. Não é incomum pessoas ricas acumularem dívidas em momentos de crise em seus negócios. Isso acontece com empresários como Eike, com artistas, como o falecido Michael Jackson, com esportistas, como o Maradona. Apesar da situação incômoda, nenhum deles chegou a passar necessidade.
A situação de vida de uma pessoa está mais associada ao patrimônio bruto, formado pelos ativos, deixando de considerar as dívidas. Analisá-lo corrigiria as distorções, pois mostraria apenas os recursos que a pessoa tem à disposição. Uma outra forma seria truncar os PLs negativos em zero. Afinal, ninguém se desfaz de tudo que possui para pagar dívidas. Dívidas podem ser renegociadas, ter seus prazos de pagamento alongados, seus juros diminuídos, ou, até mesmo, deixar de ser pagas. Mas aderir às sugestões acima mostraria resultados menos extremos, mais moderados, o que não favoreceria o discurso por mais intervenção estatal para corrigir o que estaria errado. O relatório da Oxfam tem uma série de recomendações que seriam as soluções.
Não quero aqui fazer juízo de valor sobre discursos que pedem mais intervenção do governo na sociedade, pois isso daria mais um artigo, talvez um livro. Porém critico a manipulação da análise de dados para que haja encaixe em um discurso pré-estabelecido.
O mais incoerente de comparações como as discutidas aqui é o uso de uma única variável, a própria riqueza, para tirar conclusões sobre a justiça ou injustiça de sua distribuição. Pouca gente tem muito dinheiro, muita gente não tem muito dinheiro. Isso seria injusto por si só, ponto final. Toda complexidade das relações econômicas do mundo reduzida na análise de uma variável.
Parece um claro caso do efeito jumping to conclusions (pulo para as conclusões), descrito pelo psicólogo, Nobel de Economia, Daniel Kahneman em seu livro Thinking, Fast and Slow (Rápido e Devagar: duas formas de pensar). Nosso cérebro, que não gosta de gastar muita energia, ao lidar com informações estatísticas, é seduzido pela resposta mais fácil e não analisa com mais profundidade a questão. Muitas vezes, a análise de dados informa mais sobre quem analisa do que sobre o fenômeno analisado. Alguém também poderia olhar para as informações de desigualdade, em que muita gente só vê como fruto de injustiças, e concluir que é tudo fruto da meritocracia.
Não são os números de como a riqueza está distribuída que mostram se a distribuição é justa ou não. Sempre ouvimos que “a desigualdade está alta demais”. Mas quais seriam os números ideais? Tem que baixar quanto para ficar justo? Não há resposta, não existem números ideais. Para fazer qualquer análise sobre justiça, temos que saber a origem da desigualdade. A riqueza foi obtida através de inovações que trouxeram produtos e serviços que melhoraram a vida da população, como a do criador da Amazon e de outros bilionários da tecnologia, ou através de métodos criminosos, de obtenção de monopólios, de privilégios; ou sobre quanto da pobreza ainda existente é fruto de falta de oportunidades, de guerras, de ditaduras violentas, ou de más escolhas pessoais. Parece que sempre há o pulo para as conclusões ao ver os números da desigualdade.
Quando se fala sobre desigualdade, os mais pobres são alvo de preocupação. Se você observar a lista abaixo com os índices de Gini, perceberá que há países com altos índices de desigualdade onde os pobres têm melhores condições de vida do que em outros países com índices mais baixos. O Brasil tem uma desigualdade que pode ser considerada altíssima, mas nossa população mais pobre está em melhor condição do que a de países como China, Índia, Moçambique e vários outros com índices menores. Segue a lista com os índices:
https://pt.wikipedia.org/wiki/Lista_de_pa%C3%ADses_por_igualdade_de_riqueza
Um dos principais fatores que impactam o patrimônio é a idade. Nem todo mundo vai ficar bilionário com ao longo da vida, mas leva tempo para construir riqueza. A idade média dos bilionários do mundo está em torno de 63 anos, 54% deles construiu sua própria riqueza, 26% trabalhou ativamente para aumentá-la e apenas 20% são meros herdeiros, segundo dados da empresa de serviços financeiros UBS em 2014. A média de idade da população mundial era de 29,7 anos, segundo o World Demographics Profile 2014. Segue uma matéria sobre o “Censo dos Bilionários” feito pela UBS em 2014:
Em resumo, devemos tomar cuidado com as informações baseadas em análise de dados que são divulgadas nos meios de comunicação. É bem comum a publicação de análises viciadas com o objetivo de fortalecer discursos pré-estabelecidos ou apenas chamar atenção para dados curiosos com a intenção de atrair cliques. Um olhar desatento pode deixar passar detalhes importantes.
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Estatístico e cientista de dados. Apaixonado por aprender e compartilhar conhecimento nas áreas de estatística, economia, finanças e investimentos. Experiência com modelagem estatística e econométrica para a previsão de demanda no transporte rodoviário de passageiros e ferroviário de cargas; análise econômico-financeira de seguros ferroviários; planejamento amostral para pesquisas de campo e construção de modelos de Machine Learning para a análise de propensão de compra, risco de crédito e detecção de fraude.