O coronavírus, a cloroquina e o que muitos não entenderam sobre a ciência

ciência, coronavírus, cloroquina, azitromicina

Alguns remédios têm sido usados no combate ao coronavírus: cloroquina, hidroxicloroquina, azitromicina, remdevisir, etc. Há um verdadeiro debate público sobre o uso dos fármacos e, como em todo debate público, há muitos discursos impróprios sendo veiculados por aí.

O discurso que mais tem me incomodado, motivo de escrever este artigo, é o de alguns “defensores da ciência”, que confundem ausência de prova definitiva com a ineficácia de um tratamento. Vou explicar melhor, acompanhe-me.

A pesquisa científica moderna predominantemente se utiliza do método hipotético-dedutivo, que se baseia na formulação de hipóteses, que são premissas ou teses sobre como interpretar a realidade que sejam passíveis de teste (que podem ser postas à prova). No método hipotético-dedutivo, uma hipótese é considerada válida até ser demonstrada falsa. Perceba que ser válida não significa ser verdadeira, uma hipótese pode permanecer válida, sem nunca ter sido demonstrada verdadeira, pelo simples fato de nunca ter sido provada falsa.

Um erro de alguns “defensores da ciência” é considerar uma hipótese como falsa porque ela ainda não foi demonstrada verdadeira, o que é uma inversão do método científico, uma falácia sobre a ciência que até alguns cientistas se deixam levar. Antes de abordarmos o coronavírus e os fármacos diretamente, apenas como um exemplo didático, consideremos a velha discussão sobre a existência de Deus. Muitos “defensores da ciência” acreditam que a hipótese da existência de Deus deve ser rejeitada porque nunca foi demonstrada como verdadeira.

Na realidade, nunca foi provado nem que Ele existe e nem que Ele não existe. Afirmar que Deus não existe porque não há provas de sua existência é uma argumentação cientificamente inválida, dado que a hipótese de existência nunca foi demonstrada como falsa. A existência de Deus é uma questão em aberto para a ciência.

Erro parecido tem acontecido no debate sobre o uso dos remédios no combate ao coronavírus. Só que dessa vez o alvo é o conhecimento empírico, que, suscintamente, se refere ao conhecimento vindo da observação e da percepção através dos sentidos, que faz referência ao conhecimento prático, oriundo da experiência. As pessoas observam a realidade, formam suas percepções e, consequentemente, o conhecimento empírico. Parte deste conhecimento acaba sendo comprovado cientificamente e parte não é. É assim desde os primórdios, o empirismo é um dos guias naturais da obtenção do conhecimento científico (sempre foi!).

Numa situação sem precedentes como a proporcionada pelo novo coronavírus, os profissionais da área médica, com base em sua experiência, testam possibilidades tratamentos e observam os resultados, formando o seu conhecimento empírico sobre o novo fenômeno. Alguns tratamentos parecem funcionar e outros não, assim como outros em eventos passados. No combate ao corona, os fármacos citados acima pareceram promissores e animaram muita gente, enquanto suscitou descrença em outros, pois ainda não há comprovação científica.

Tenho visto em diversos meios de comunicação gente rechaçando o conhecimento empírico que foi formado a respeito dos fármacos. Vi gente defendendo que os fármacos não deveriam ser usados em tratamento até que haja comprovação científica da eficácia, pois o mero conhecimento empírico dos médicos e outros profissionais não seria satisfatório. Vi até gente recriminando o uso dos tratamentos ainda não comprovados como procedimento anticientífico.

Estes pensamentos incluem até uma certa inversão de valores: poderíamos usar as substâncias dentro dos experimentos para testar a eficácia, mas não poderíamos usar para de fato salvar as vidas das pessoas em um contexto não experimental (isso não tem lógica). Esses “defensores da ciência” estão completamente errados, parece que nem entenderam o que é ciência de fato.

Desprezar hipóteses (possibilidades de tratamento) dessa forma é mais um caso da errônea inversão do método científico, como a falácia citada acima, achar que algo deve ser considerado falso até que se prove como verdadeiro.

Com certeza, precisamos ser céticos. É necessário completar os ensaios clínicos devidos para se obter alguma comprovação. Uma dose de ceticismo faz muito bem a esse processo e à ciência de forma geral. A eficácia dos remédios precisa ser cientificamente testada obviamente.

Mas não se deve confundir a falta de comprovação científica com a falta de efeito de um tratamento. Não ter prova definitiva da eficácia não significa que não haja eficácia. Não se deve menosprezar o conhecimento empírico dessa maneira, dado que o empirismo é umas das principais bases para a obtenção do próprio conhecimento científico há muitos séculos.

Muitos dos tratamentos e remédios cientificamente comprovados que existem hoje são provenientes de alguma aplicação com base puramente empírica no passado. Enquanto não houver provas definitivas, a questão continua em aberto e o empirismo tem validade de aplicação. Sempre foi assim em nossa história.

Você não está defendendo a ciência quando despreza o conhecimento empírico e acusa de anticientífico o uso de um tratamento ainda pendente de testes. Na verdade, quem despreza a validade de uma hipótese (tratamento) que ainda não foi falseada é quem se aproxima de ser anticientífico, talvez nem saiba direito o que é ciência e esteja só repetindo o que viu no seu jornal preferido (que também caiu na mesma falácia acima).

O escritor Nassim Taleb, que se define como um empirista cético, em dois de seus livros mais famosos, Black Swan e Antifragile (“A lógica do cisne negro” e “Antifrágil”), cita que muito do que sabemos cientificamente hoje foi descoberto e abundantemente utilizado bem antes da devida comprovação científica. A Medicina não escapa desse fato.

Um dos exemplos mais notáveis citados nos livros são as construções antigas (seculares ou milenares) que foram erguidas com base em conhecimento prático muito antes das descobertas da Física e dos modernos cálculos de engenharia.

Aliás, as construções antigas têm até algumas vantagens, pois sem dispor dos conhecimentos científicos modernos, suas estruturas foram construídas com muita sobra e estão aí até hoje, enquanto algumas construções modernas, erguidas com foco na otimização de custos, desmoronam nas primeiras situações não previstas no projeto. Podem ser encontrados na história vários exemplos em que o conhecimento empírico resolveu problemas, alimentou populações inteiras, salvou vidas e só depois a ciência comprovou tudo. Não subestime tudo que ainda não foi cientificamente comprovado.

Resumindo, ser um defensor da ciência não é apenas ser cético com o que ainda não foi comprovado, é também não descartar hipóteses que não foram devidamente provadas como falsas. Se você despreza a validade do conhecimento empírico e descarta hipóteses sem o devido falseamento, você não está sendo um verdadeiro defensor da ciência. Talvez só um simpatizante.

Achou interessante para um amigo? Compartilhe!
Ficou com alguma dúvida? Deixe nos comentários!

Quer receber mais artigos como esse, deixe o seu e-mail na barra lateral ou no final da página.